Sou morador de
Guarulhos há 23 anos e 7 meses. Em números relativos é a minha
vida inteira. Em números absolutos é quase um quarto de século. É
bastante tempo.
Foi tempo suficiente
para criar no meu imaginário uma ideia de Guarulhos como sendo a
Periferia do Mundo, haja vista a quantidade de horas que já perdi me
locomovendo da minha casa para qualquer outro lugar. Na prática,
Guarulhos é uma espécie de Periferia da cidade de São Paulo,
travestida pelos dados de ser a oitava economia do Brasil.
Hoje em dia esses
números da economia da cidade são puxados pelas redes hoteleiras e
pelas grandes empresas de logística que se instalaram na cidade que
tem o aeroporto Internacional de Cumbica e a Rodovia Presidente
Dutra; duas importantes ferramentas para fazer girar a grande roda da
economia global: pessoas e mercadorias passam diariamente pela minha
cidade.
E entre o meu
imaginário e a vista aérea das pessoas e mercadorias que passam por
Guarulhos, há uma realidade tão multifacetada e tão complexa, que
pouco me atreveria a falar sobre.
Mas sou atrevido.
Conheci o Bairro das
Pimentas pela primeira vez em 2000, quando fui com um amigo que havia
estudado comigo e tinha se mudado recentemente para lá, em um show
do Racionais Mc's. A imagem do show até hoje é marcante para mim,
pois eu achava que conhecia Racionais e achava que conhecia
periferia.
Até hoje não sei ao
certo se eu realmente ouvi que havia “milhares de casas amontoadas,
ruas de terra”, que “aquele lugar era um pesadelo periférico”,
que havia “vários botecos abertos, e várias escolas vazias”.
Talvez eu tivesse pela primeira vez vendo o que minha mente imaginava
ao ouvir o CD “Sobrevivendo no Inferno”. Eu já conhecia o bairro
das Lavras, Bonsucesso, Soberana, Fortaleza, Cabuçu, Cocaia, etc...
Não tenho dúvidas em afirmar que o Bairro das Pimentas tinha
situação mais miserável, e com mais problemas estruturais do que
todos esses outros bairros que eu citei.
Uma década depois, o
bairro das Pimentas é freqüentado por mim diariamente e passo mais
horas naquele lugar do que passo na minha casa. Muita coisa mudou,
porque de uma forma ou de outra as pessoas passaram a enxergar aquela
região, ela finalmente apareceu no mapa e foi ligada com o restante
da Cidade, mesmo que pelas vias erradas, sejam elas a Via Dutra ou a
via da economia global.
Muita coisa mudou, a
começar pelo nome, que hoje em dia é no masculino: bairro dos
Pimentas. Mas mudou-se também a estrutura daquela região, que antes
nem ônibus tinha e agora possui um terminal urbano bastante completo
e tem inúmeras linhas que ligam a região com o restante da Cidade.
Também existe um shopping que além de empregar muitos moradores da
região, também serve de centro de convivência e entretenimento
para jovens que antes só tinham o shopping internacional, que de
Guarulhos só tinha a isenção de impostos mesmo. O CEU-Pimentas
também foi entregue recentemente e é responsável por promover
parte dos incentivos a educação, cultura e lazer. E além disso,
tem o campus de Humanas da Unifesp. O que dizer da Unifesp-Pimentas?
A Unifesp certamente
contribui para desenvolver inúmeras práticas educacionais, seja
através do convênio que tem com a secretaria da educação da
Cidade, seja através das iniciativas dos coletivos estudantis
organizados. Apesar de ser uma bolha, a Unifesp também tem um papel
importante para bairro e ficou claro isso quando houve a grande
defesa por parte de parcela da comunidade e por parte de estudantes
que se engajaram na luta para que a Universidade não saísse da
região.
Por outro lado, dentro
dessa mesma luta foi possível observar setores conservadores que se
dedicaram fortemente para tirar o campus de lá com discurso que
pouco ou nada camuflavam a a vontade de não permanecer naquela
região periférica. Grande parte dessa defesa foi feita através do
famoso “Dossiê do campus Guarulhos” assinado pelo professor
Juvenal, mas que reunia outros defensores na sua causa, que era pouco
ou nada fundamentada em argumentos sólidos e era extremamente
elitista.
O mesmo discurso
elitista é ouvido nos corredores da Vila Clementino, em que todos os
setores torcem o nariz para o fato de existir um convênio entre a
faculdade de medicina e o Hospital Pimentas, inaugurado na mesma
época da Unifesp-Guarulhos, e que previa que o melhor centro de
formação de médicos do Brasil atuasse naquele Hospital para
promover saúde pública a população daquela região.
Vai lá ouvir qual é a
reclamação da população sobre a questão da saúde. “O Hospital
tá pronto há muito tempo, mas é tão difícil marcar consulta.
Eles dizem que não tem médico”.
Medicina é o curso
mais elitista do Brasil. Cursinhos especializados em aprovar
estudantes para esse curso superior faturam zilhões de dinheiros na
tão famosa indústria do vestibular. Você vai esperar que pessoas
tão ricas se desembestem para a periferia da periferia de São
Paulo? O máximo que essas pessoas querem de Guarulhos é ser bem
tratado no aeroporto e que suas importações cheguem no prazo.
De forma nenhuma afirmo
aqui que o único problema da saúde pública no Brasil é essa.
Tenho plena certeza de que essa é apenas uma realidade em que há
estrutura hospitalar e falta médico. No entanto, há um problema
muito maior com relação ao sistema de saúde no Brasil, que é o
corte de classes da profissão.
Médicos Cubanos não
são a única saída para esse problema, mas não se engane nesse
discurso vazio de “falarem outra língua” e “não conhecerem a
realidade brasileira”. Eu prefiro um médico que não conheçam
perfeitamente a nossa cultura, mas que seja da nossa Classe social.
Sejam bem vindos,
médicos cubanos.