sábado, 20 de julho de 2013

Ações pontuais, transformações estruturais


-->
Para a maioria dos jovens que estudam nas escolas públicas de São Paulo, o horizonte de expectativa para o seu futuro pós-ensino regular não é muito promissor. O que a gente mais queria mesmo era se formar, acabar com a marcha cotidiana para dentro de uma espécie de prisão, com vários agentes repressores e com alguns poucos que acreditavam no nosso potencial.
Nesse meio não havia nenhum motivo para pensar em alguma transformação de larga medida nas nossas vidas.
Vencer o funil elitista do vestibular era a dificuldade maior enxergada por nós. Como que poderíamos vencer os concorrentes que tinham muitas horas a mais de estudos, professores com remuneração e condições de trabalho infinitamente melhores além de um ensino com um claro e único objetivo: ingressar no ensino superior público de ponta. Claro que sabíamos o que era aquilo e também queríamos alcançar aquele patamar, principalmente porque era gratuito.

No meio de um sistema consolidado e de difícil transformação, sempre tem espaço para atuação individual que poderia, de alguma forma, levar a transformações pontuais. Duas professoras acreditaram nisso, em meados da década passada na Escola Estadual Maria Leoni.
Essas duas professoras ajudaram de todas as formas possíveis: consegui livros que não tinha, exercícios que cairiam nos vestibulares, isenção de inscrições e o principal, a compreensão de que o vestibular não iria medir nossos conhecimentos ou esforços, mas serviria apenas para filtrar quem seria escolhido para entrar na Universidade.
Com essa ajuda, com essa atuação mínima dentro de um sistema brutal constituído, essas agentes históricas me ajudaram a ter consciência de inúmeras coisas, dentre as quais, a principal era a de colocar na minha mente que eu iria estudar numa universidade pública.
Mas o sistema não costuma dar muitas brechas. Claro que a atuação das professores citadas foi essencial e um divisor de águas na minha vida. Mas muitas vezes elas não são tão fortes para conseguir uma transformação maior que a da cosciência.

Vencemos a barreira do vestibular. Poucos sabem, mas eu entrei em duas instituições de ponta no ensino de comunicação social que queria seguir à época: jornalismo na Fundação Cásper Libero e jornalismo na Escola de Comunicação e Artes da USP. Não consegui cursas em nenhuma das duas. Naquela, a mensalidade exorbitante de 1300 reais mensais não me permitia sequer pensar na possibilidade. Nesta, uma semana de aula foi suficiente para entender que meu lugar não era ali, entre aqueles jovens paulistanos que freqüentavam a Vila Madalena todo o final de semana. Afinal de contas, eu sequer conhecia a Vila Madalena. Eu era de Guarulhos.
E só então consegui entender o que significava ser de Guarulhos. Ser de Guarulhos é ter a periferia dentro de você, porque independente de qual bairro você é nessa cidade riscada pela linha mortal da Dutra e sem a minhoca de metal dos trens, você está na periferia do mundo. Anos sem fim de exploração da mão de obra barata de imigrantes dos mais variados lugares. Anos sem fim de multinacionais explorando o território com isenções de impostos transformaram “a cidade progresso” numa terra escondida, com moradores levando consigo a mesma cara marcada pela vida severina.

Eis que então, que se em Guarulhos tive de nascer, Guarulhos terei de vencer.

E se dentro de um sistema brutal e excludente, agentes históricos me ajudaram a ter uma transformação de consciência, outro ponto mínimo e reformista colaborou ainda mais para a transformação prática na minha vida.
A expansão das universidades federais levou para o bairro dos Pimentas, em Guarulhos, o campus de Humanas da Unifesp. Com ele, o curso de História foi implantado e eis que então eu percebi que mais do que escrever e falar sobre, eu queria de fato entender. Afinal de contas, o jornalista é o cara que fala de tudo sem saber de nada. O historiador é a pessoa que sabe das coisas e não fala muito. Polêmicas a parte, estudar na minha cidade o curso escolhido e numa universidade pública. A transformação não poderia parar.
4 anos depois estou aqui. Tudo mudou. Tudo se transformou. Passei pela experiência mais incrível da minha vida ao cruzar o muro da Unifesp Pimentas a primeira vez.

Eu poderia passar o resto do texto falando dos problemas que acontecem dentro desse muro. Denunciando, inclusive, a própria existência de muros. No entanto hoje escrevo de maneira egoísta e mesquinha, porque aquele prédio em mal estado, aquelas longas filas para tudo e aquela comida ruim do bandejão fazem parte da minha vida e ajudaram a formar a pessoa que eu sou hoje. No campus do Pimentas, mesmo com toda a dificuldade que se encontra, não encontrei a barreira maior que as relações sociais colocam: a barreira da classe. Lá, não importou que eu era oriundo de escola pública, com dificuldades para ler e para escrever, dificuldades de assimilação do conteúdo, dificuldades de interação social e psicológica. Lá não importava que eu morasse em Guarulhos e que minha diversão eram os botecos da região. Lá, as pessoas não estavam preocupadas exclusivamente com ascensão social e em deixar de ser pobres; elas queriam pensar o porque existiam pobres. Lá eu me encontrei.

No prazo de meia década, a ação de duas professoras que ensinam na Escola Estadual Maria Leoni, ação de um governo que expandiu a universidade pública para regiões diversas do Brasil, e a ação de diversos professores, alunos e trabalhadores que me auxiliaram durante a graduação transformaram a minha vida.

Muitas vezes não tem como esperar uma reorganização radical nas estruturas sociais para agir, a gente precisa atuar, mesmo que com pequenas ações. Á essas ações, só tenho a dizer obrigado.
E dizer que esse é o papel de pequenas ações: desencadear transformações maiores, estruturais. Faço aqui meu compromisso com elas!