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Para a maioria dos
jovens que estudam nas escolas públicas de São Paulo, o horizonte
de expectativa para o seu futuro pós-ensino regular não é muito
promissor. O que a gente mais queria mesmo era se formar, acabar com
a marcha cotidiana para dentro de uma espécie de prisão, com vários
agentes repressores e com alguns poucos que acreditavam no nosso
potencial.
Nesse meio não havia
nenhum motivo para pensar em alguma transformação de larga medida
nas nossas vidas.
Vencer o funil elitista
do vestibular era a dificuldade maior enxergada por nós. Como que
poderíamos vencer os concorrentes que tinham muitas horas a mais de
estudos, professores com remuneração e condições de trabalho
infinitamente melhores além de um ensino com um claro e único
objetivo: ingressar no ensino superior público de ponta. Claro que
sabíamos o que era aquilo e também queríamos alcançar aquele
patamar, principalmente porque era gratuito.
No meio de um sistema
consolidado e de difícil transformação, sempre tem espaço para
atuação individual que poderia, de alguma forma, levar a
transformações pontuais. Duas professoras acreditaram nisso, em
meados da década passada na Escola Estadual Maria Leoni.
Essas duas professoras
ajudaram de todas as formas possíveis: consegui livros que não
tinha, exercícios que cairiam nos vestibulares, isenção de
inscrições e o principal, a compreensão de que o vestibular não
iria medir nossos conhecimentos ou esforços, mas serviria apenas
para filtrar quem seria escolhido para entrar na Universidade.
Com essa ajuda, com
essa atuação mínima dentro de um sistema brutal constituído,
essas agentes históricas me ajudaram a ter consciência de inúmeras
coisas, dentre as quais, a principal era a de colocar na minha mente
que eu iria estudar numa universidade pública.
Mas o sistema não
costuma dar muitas brechas. Claro que a atuação das professores
citadas foi essencial e um divisor de águas na minha vida. Mas
muitas vezes elas não são tão fortes para conseguir uma
transformação maior que a da cosciência.
Vencemos a barreira do
vestibular. Poucos sabem, mas eu entrei em duas instituições de
ponta no ensino de comunicação social que queria seguir à época:
jornalismo na Fundação Cásper Libero e jornalismo na Escola de
Comunicação e Artes da USP. Não consegui cursas em nenhuma das
duas. Naquela, a mensalidade exorbitante de 1300 reais mensais não
me permitia sequer pensar na possibilidade. Nesta, uma semana de aula
foi suficiente para entender que meu lugar não era ali, entre
aqueles jovens paulistanos que freqüentavam a Vila Madalena todo o
final de semana. Afinal de contas, eu sequer conhecia a Vila
Madalena. Eu era de Guarulhos.
E só então consegui
entender o que significava ser de Guarulhos. Ser de Guarulhos é ter
a periferia dentro de você, porque independente de qual bairro você
é nessa cidade riscada pela linha mortal da Dutra e sem a minhoca de
metal dos trens, você está na periferia do mundo. Anos sem fim de
exploração da mão de obra barata de imigrantes dos mais variados
lugares. Anos sem fim de multinacionais explorando o território com
isenções de impostos transformaram “a cidade progresso” numa
terra escondida, com moradores levando consigo a mesma cara marcada
pela vida severina.
Eis que então, que se
em Guarulhos tive de nascer, Guarulhos terei de vencer.
E se dentro de um
sistema brutal e excludente, agentes históricos me ajudaram a ter
uma transformação de consciência, outro ponto mínimo e reformista
colaborou ainda mais para a transformação prática na minha vida.
A expansão das
universidades federais levou para o bairro dos Pimentas, em
Guarulhos, o campus de Humanas da Unifesp. Com ele, o curso de
História foi implantado e eis que então eu percebi que mais do que
escrever e falar sobre, eu queria de fato entender. Afinal de contas,
o jornalista é o cara que fala de tudo sem saber de nada. O
historiador é a pessoa que sabe das coisas e não fala muito.
Polêmicas a parte, estudar na minha cidade o curso escolhido e numa
universidade pública. A transformação não poderia parar.
4 anos depois estou
aqui. Tudo mudou. Tudo se transformou. Passei pela experiência mais
incrível da minha vida ao cruzar o muro da Unifesp Pimentas a
primeira vez.
Eu poderia passar o
resto do texto falando dos problemas que acontecem dentro
desse muro. Denunciando, inclusive, a própria existência de muros.
No entanto hoje escrevo de maneira egoísta e mesquinha, porque
aquele prédio em mal estado, aquelas longas filas para tudo e aquela
comida ruim do bandejão fazem parte da minha vida e ajudaram a
formar a pessoa que eu sou hoje. No campus do Pimentas, mesmo com
toda a dificuldade que se encontra, não encontrei a barreira maior
que as relações sociais colocam: a barreira da classe. Lá, não
importou que eu era oriundo de escola pública, com dificuldades para
ler e para escrever, dificuldades de assimilação do conteúdo,
dificuldades de interação social e psicológica. Lá não importava
que eu morasse em Guarulhos e que minha diversão eram os botecos da
região. Lá, as pessoas não estavam preocupadas exclusivamente com
ascensão social e em deixar de ser pobres; elas queriam pensar o
porque existiam pobres. Lá eu me encontrei.
No prazo de meia
década, a ação de duas professoras que ensinam na Escola Estadual
Maria Leoni, ação de um governo que expandiu a universidade pública
para regiões diversas do Brasil, e a ação de diversos professores,
alunos e trabalhadores que me auxiliaram durante a graduação
transformaram a minha vida.
Muitas vezes não tem
como esperar uma reorganização radical nas estruturas sociais para
agir, a gente precisa atuar, mesmo que com pequenas ações. Á essas
ações, só tenho a dizer obrigado.
E dizer que esse é o
papel de pequenas ações: desencadear transformações maiores, estruturais. Faço aqui
meu compromisso com elas!