quinta-feira, 15 de maio de 2014

Discurso de formatura Turma 2013



Hoje encerramos uma etapa em nossas vidas. Neste momento torna-se impossível não lembrarmos das nossas primeiras impressões enquanto graduandos. Como se esquecer das primeiras leituras? Especialmente àquelas que nos fizeram refletir sobre o que é História... Lendo o grande historiador Marc Bloch, aprendemos que a História poderia ser definida como a ciência que estuda os homens no tempo, e para analisá-la precisamos considerar a importância do presente para a compreensão do passado. Partindo desta idéia, relembramo-nos da trajetória que nos trouxe até aqui.

Nossa caminhada no curso de História da Unifesp foi marcada por diversas dificuldades e algumas pequenas conquistas cotidianas, que trilharam o longo caminho percorrido que culmina no dia de hoje, nossa colação de grau.

Todas e todos aqui presentes trazem consigo, e se lembram agora, do primeiro seminário apresentado, das dificuldades com a grande quantidade de textos para ler, o imprevisível fim de semestre, aquele trabalho final que nos tirou longas horas ensolaradas nos nossos fins de semana... nos lembramos também das estruturas de poder, das posturas autoritárias... da recorrente falta de diálogo na construção do curso e da universidade.

Também enfrentamos longas filas nas Xerox e comemos mais vezes do que gostaríamos no bandejão... chegamos tarde em casa, sempre perdendo horas sem fim parados no transito do Trevo de Bonsucesso.

Entrar no curso de História da Unifesp significou para muitos conhecer Guarulhos sem ser pela paisagem a caminho do aeroporto. Desembarcamos nos Pimentas em sua dura e acolhedora realidade, que naquela época não tinha sequer seu terminal de ônibus, tampouco o CEU. Apresentamos a muita gente a possibilidade da universidade. Apesar dos muros sempre presentes, vislumbramos sua derrubada. E percebemos que uma realidade em que universidade e sociedade não estejam apartadas, como muitas vezes a academia deseja, é possível.

Com muita luta trouxemos o Itaquerão e depois a Ponte Orca... Hoje há três linhas de transporte para facilitar o acesso à Universidade de pessoas dos mais diversos lugares. Mas ainda assim seguimos em busca de um transporte verdadeiramente público, de qualidade, a todas e todos, nas mais longínquas periferias.

Nossa longa caminhada teve até uma mudança geográfica, já que começamos no Pimentas, e terminamos aqui no Centro, nas salas do campus provisório.

Apesar disso, é claro que também nos recordamos positivamente do primeiro seminário, já mencionado... dos elogios recebidos que nos deram a certeza de que estávamos no caminho certo. Nos vem a mente agora aquelas aulas extraordinárias, que nos prendiam por 4 horas, as vezes sem intervalos! Aulas que nos roubavam inúmeros suspiros, que nos prendiam por horas e horas, dias e dias, absortos em pensamentos mil, percebendo a gama sem fim de possibilidades que nosso ofício nos oferecia. Também nos lembramos dos grandes debates travados dentro das salas de aula e nos corredores da universidade, onde experimentávamos tudo o que aprendemos, testávamos nossos conhecimentos, em jogos que ganhar ou perder não estava no horizonte, o importante era a magia do espetáculo.

Lembrando da nossa trajetória agora, nesse emotivo momento, podemos optar por um olhar positivo ou negativo, dependendo muito do subjetivo de cada um. Mas se há uma coisa que aprendemos - e muito bem! - nessa caminhada para nos tornarmos historiadoras e historiadores, é que entre o preto e o branco de uma lógica antagônica, há uma diversidade de cores possíveis.

Dentre esses distintos tons, para além de lembrar dos momentos pessoais, bons e maus, propomos aqui uma reflexão sobre as transformações pelas quais passamos enquanto sujeitos da história. E que se estamos hoje aqui, tudo foi fruto de múltiplas determinações.

E hoje, ao recebermos na prática o diploma que nos qualifica para o ofício do historiador, não deixaremos de lembrar que ainda somos privilegiados por estarmos concluindo o ensino superior, em um país que carece de democratizar o acesso às universidades.

Também fazemos questão de lembrar que se terminamos o curso nesse campus provisório, foi por ter a certeza de que um dia poderemos voltar para o campus do Pimentas, no nosso prédio, pelo qual tanto lutamos, onde sentamos na sala de aula da graduação em História pela primeira vez, e de onde nossos corações e mentes nunca saíram.

E reafirmamos nosso compromisso com a construção de um projeto universitário cada vez mais capaz de lidar com os novos desafios. Uma universidade que a cada instante se desenvolva por alternativas inclusivas e integradoras; e sirva, em todas as dimensões, para construir um saber de excelência, rigoroso e alinhado às reais necessidades sociais.

Por isso, para além da felicidade que é receber a certificação que nos constata como profissionais qualificados em analisar as ações do homem no decorrer do tempo, recebemos também uma missão difícil, mas essencial, para os anos que se seguem a partir de hoje: a missão de que nós, historiadores, não sejamos apenas os sujeitos que falam da História, mas também, os sujeitos que a transformam.

Que este dia se mantenha vivo em nossas lembranças e que estas transformem-se em memórias, e que elas sempre permaneçam presentes, até mesmo quando se tornarem passado: nosso primeiro dia enquanto historiadores formados.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

O mundo ainda é um moinho



Já é tão tarde, amigo
Tentamos, a todo o custo, conhecer a vida
Implacavelmente, chega a hora da partida
Independente do rumo que escolhemos tomar.
Eu prestei atenção, companheiro
E sei que as sábias palavras eram para a tua querida
Mas para cada um, cabe um pouco de tuas rimas
E hoje já não são mais o que eram.
Ouça-me bem, Cartola
O mundo ainda é um moinho
Tritura nossos sonhos, tão mesquinho
Reduz nossas ilusões à pó.
Mas preste atenção, querido
Não é o amor que me faz iludido,
E só estamos à beira do abismo
Porque nosso povo, oprimido é.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O argumento de Rachel Sheherazade ou porque estudamos História



Rachel Sheherazade afirmou que ela vê a reação de “gente de bem” à violência endêmica e a ausência da justiça como algo justo. Nas palavras dela: “legitima defesa coletiva”.
Subverto o raciocínio então. Alguém que nasceu na miséria da periferia paulistana, no fogo cruzado dos morros cariocas ou nas mais diversas periferias, mocambos, alagados, pedaços de terra pelo Brasil a fora, vítima de um sistema social excludente, que tem por base a concentração de riqueza que ainda tem suas condições de vida pioradas pelos anos de escravidão e pelo ranço racista que esse país ainda carrega, não está apenas respondendo na sua própria legítima defesa quando pratica qualquer tipo de ato fora da lei?
Uso ainda seu argumento para questionar mais uma pequena coisa. Caso eu compreenda que os anos de governo tucano no Estado de São Paulo foram responsáveis diretos pelo nível precário da educação existente em São Paulo, sendo, dessa forma, o fator por me fazer ser hoje um profissional com salário e condições de trabalho extremamente defasados, mesmo tendo uma boa formação, eu posso agir em legitima defesa coletiva do ponto de vista do grupo contra ele?
Ou caso companheiras e companheiros que vivem sob o impiedoso domínio da família Sarney e que são vítimas da concentração de terra dos grandes latifundiários nordestinos queiram agir em legítima defesa e assassinem Sarney, eles não estariam certo, sob o ponto de vista dessa mulher?
Dois pesos e duas medidas, enviesado pelo ponto de vista que ela defende hoje: de uma classe dominante que ruma à passos largos para um conservadorismo nunca antes visto. Por outro lado, uma falta de vontade ou ignorância absurda de compreender que por mais que ela queira acreditar nisso, as coisas não se criam do nada, não há uma divisão prévia entre pessoas boas e pessoas más, mesmo que as religiões de hoje em dia divulguem isso. Múltiplas determinações, dialética entre estrutura histórica e conjuntura da ação social das pessoas e sínteses históricas ajudariam essa mulher a falar menos besteiras. E também ajudariam que mais pessoas compreendessem o tamanho do absurdo que ela falou, e exigissem não só sua retratação, mas uma mudança de pensamento coletivo para tentarmos construir ideais necessários, como justiça social, divisão de renda e a construção de direitos humanos.
Por isso, senhoras e senhores, que estudamos História.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

"Rolezinhos", segregação espacial e resistência.




No final da década de 1980, jovens que moravam na periferia paulistana elegeram o centro de São Paulo para servir de palco para encontros voltados para uma manifestação cultural nova, que envolvia uma dança com movimentos quebradiços, desenvolvidas ao som de sintetizadores e baterias eletrônicas pré-programadas. A restrição imposta pela organização que a cidade de São Paulo tomou, excluindo seus habitantes mais pobres do convívio coletivo, expulsando-os para regiões afastadas do centro da cidade que não contavam com mobilidade urbana apropriada para seu deslocamento.
O sentimento expresso pelos jovens que criaram o Rap em São Paulo era de um basta com essa situação de exclusão social, que não os permitia participar dos acontecimentos do Centro da cidade. Contra as normas impostas pelos agentes da ordem, enfrentado forte repressão policial e sofrendo crítica da sociedade influenciada pela mídia, esses jovens resistiram e seguiram na sua caminhada que levou a consolidação do Rap paulistano, gênero musical e movimento social extremamente importante para o cotidiano da população pobre brasileira.
Os ideais de transformação foram expressos por mais de vinte anos por esses mesmos jovens, sonhando e lutando por melhores condições de vida, moradia digna e participação na vida econômica de nosso país. Durante esse tempo, foi possível presenciar a transformação do espaço público urbano e uma diferente periferização da cidade. Cresceram os shopping centers, e se tornaram no verdadeiro centro de diversão que as pessoas procuram, ao passo que os centros urbanos, espaços verdadeiramente públicos perderam seu valor, seu status e sua importância para os jovens.
Agora uma nova leva de jovens marginalizados por nossa sociedade excludente se organiza e busca o “novo espaço público” para se manifestar, se divertir, confraternizar; sobretudo, buscam fugir do sentimento devastador de não participação na sociedade: fazem o “rolezinho”.
Só que agora o espaço público, se privatizou. Com isso, esse sistema opressor conseguiu institucionalizar o racismo, e nossa mídia atuante em prol das causas da classe dominante transmite apenas a reação que milhares de jovens que foram excluídos historicamente têm ao serem mais uma vez reprimidos na sua tentativa de participação da sociedade. O sistema se modificou ao ponto de ser mais cruel do que foi com aqueles jovens que ocuparam o centro histórico de São Paulo no final da década de 1980.
Por isso eu faço um apelo. Não se apeguem ao fato de “não é problema nosso”, de questionar sobre o seu “direito de frequentar o shopping e fazer compras”. Não se enganem com os argumentos de “são um bando de arruaceiros que querem fazer baderna”. Não me ofendam dizendo que “se trata de vândalos”.
O shopping Center foi criado para esconder de você a miséria em que a maior parcela do nosso povo vive. Dentro dele, você pode participar da festa do consumo sem se preocupar com nenhum tipo de perigo. É assim que ele foi vendido e você comprou a ideia, se iludindo ao achar que escondendo a exclusão que o capitalismo causa, tudo estaria em paz para você.
Pois não está. Nunca estará em paz, enquanto alguém estiver sofrendo para outro alguém desfrutar de algum tipo de benefício. Portanto, de todas as questões importantes que esse novo fato social trouxe, eu destaco o que, para mim, é o mais importante: o rolezinho trouxe a realidade para dentro do Shopping Center e invadiu o cotidiano da nossa classe dominante com a realidade que, de variadas formas, tentou-se esconder. Assim como o Rap fez durante muito tempo, invadindo a sala de estar da classe média com fatos que fazem parte da realidade cotidiana da periferia.
Então, um salve para o rolezinho! E que ele continue, porque todo o mundo tem o direito de encontrar seu pertencimento na sociedade. E um salve ainda maior, porque vocês continuam dizendo para os ricos da nossa sociedade que a Periferia Segue Sangrando!